domingo, 14 de setembro de 2025

Semana de isolamento

FUNAI, SESAI e MPI passaram uma semana reunidos para discutir um padrão de reação institucional articulada em casos de contato ou iminência de contato com indígenas isolados. Eu, que só conhecia as histórias dos sertanistas e de interações com isolados pela via da escrita, fiz questão de ir lá todos os dias e acompanhar as discussões. Nossa estrela guia era Jair Candor pela experiência com os Piripkura e Kawahiva do Rio Pardo no MT.

Jair Candor
No primeiro dia, já fui reconhecida como "professora Lou" e me enturmei facinho com o pessoal da FUNAI. Uns dias depois, Clarisse Jabur narrou o primeiro contato que aconteceu no igarapé Xinane em 2014. Havia 20 anos que não se tinha notícias de contato com povos indígenas isolados no Brasil e de repente a confusão se instalou. 7 pessoas fizeram contato com os Ashaninka no dia 07/07/2014, dia em que o Brasil perdeu de 7 x 1. A palavra CONTATO tem 7 letras...

Leopoldo, Gustavo, Leonardo, Cangussu e William. Foto: Washington Costa/MPI
O intuito da oficina era visualizarmos cenários de contato para estabelecer protocolos de resposta articulada entre FUNAI na ponta, SESAI na retaguarda e MPI na articulação. Havia tabelas e cálculo de risco, até um exercício de simulação estava previsto, mas as histórias de contato pressionavam.
Foto: Washington Costa/MPI
Numa manhã, esperando o pessoal chegar, Fabrício me perguntou de onde eu era. Universidade Federal de Rondônia. UNIR? Tô querendo que um biólogo vá lá estudar a biodiversidade da TI Uru Eu Wau Wau. Falei do Narcísio, filho do Eilas Bigio - que todos conhecem na FUNAI. Mundo pequeno, não?
Leopoldo, Cangussu, Luiz e William atrás, Fabrício de boné e Marco Aurélio

Na manhã em que finalmente faríamos o simulado (guiados pelo Gustavo que atua em situações de emergência e desastre e pensou graus variados de tensionamento pra nós), Fabrício anunciou que tinha encontrado um vídeo do contato de 2014 com os Korubo. A manhã toda foi dedicada a esse episódio em que os Korubo contactados em 1996 ajudaram no contato de 2014. Uma mulher korubo tinha uma picada de cobra na perna e o núcleo familiar dela fez o contato com os Kanamari. Não foi possível evitar ou reverter o contato por causa dos Korubo de 1996 que, 18 anos depois, reencontraram parentes e tinham dificuldade de compreender a finalidade de uma quarentena (que idealmente dura 14 dias e zera toda vez que for quebrada). 

Foto: Washington Costa/MPI

Os Korubo fizeram contato em 1996, em 2014, depois em 2015 já com um grupo maior e envolvendo os Matis. Depois ainda teve o contato de 2019 em que um Korubo dado como morto (tinha perdido parte do crânio) reapareceu firme e forte. Beatriz, que é antropóloga, tinha explicações históricas pra nos mostrar a complexidade das relações entre os povos Korubo, Matis e Kanamari. Beto Marubo, que fez parte da expedição em 2015, apareceu pra falar da situação atual dos Korubo.

O Fabrício tem uma maneira não muito linear de contar história, o que abriu brechas para as pessoas sentadas no semicírculo contribuírem para a trama. Luiz, sentado lá atrás, interrompia pra explicar por que os Matis quiseram se vingar dos Korubo. Lucas da SESAI, sentado perto da porta, explicou que, na visão dos Matis, criança não morre, muito menos de tosse - olha aí a transmissão viral. Quando chegou na parte em que Fabrício foi sequestrado pelos Matis pintados de preto e usando máscara com palhas espetadas, Luziane, atrás de mim, interrompia pra contar que, na canoa interceptada, disseram pra ela que nada aconteceria com ela, que eles queriam era o Fabrício. A história ia sendo costurada com contribuições vindas de diferentes ângulos e pontos de vista. Fabrício - que tinha medo da fama dos Korubo, não dos Matis - contava que era acusado de ser mentiroso, de dizer pra todo mundo que os Matis tinham quebrado o motor 40 e também quebrado uma antena. Nem motor 40 nem antena faziam sentido, mas Fabrício lembrou que tinha reclamado em alto e bom som que eles tinham quebrado a quarentena. O que era pra ser o desenlace - levar os Korubo em quarentena para um acampamento longe dos Matis - desembocou na captura do chefe da Frente da FUNAI por uma falha linguística.

Mudou a dinâmica da imersão. Entendemos que podíamos avaliar questões práticas - quem e quando abre sala de situação? Quais equipes são mobilizadas? Quais são os indicadores de risco e vulnerabilidade? - a partir dos casos concretos. Ouvimos os relatos de interação com grupos isolados em 2024 no Vale do Javari em que o contato não se concretizou e em Humaitá no Envira em que houve 2 eventos de interação com grupos isolados, um deles envolvendo provavelmente os mashko piro. No último dia, depois de ouvir o relato de Mamoriá Grande que aconteceu em fevereiro deste ano na jurisdição da Frente Madeira-Purus, fomos à simulação - que envolvia um monte de calamidade e catástrofe, mas não dava rosto aos isolados como os relatos deram.

Enquanto eu não participar de uma expedição, meu contato com indígenas em isolamento voluntário sempre será indireto. Interagir com esses caras durante essa semana foi muito mais vívido que qualquer livro pode ser.

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