Rafael Gallo venceu o Prêmio José Saramago com Dor Fantasma - que foi publicado tanto pela Porto Editora (portuguesa) como pela Editora Globo (selo Biblioteca Azul). Li o livro muito rápido: 4 dias para as 350 páginas e breve consulta na Wikipédia.
Eu gostei de ter lido, mas algo que eu não sei bem dizer o que é continua me incomodando. Vou tentar entender aqui, por escrito, por que não consigo aderir totalmente ao romance.
Dor fantasma tem a seguinte epígrafe de Amós Oz:
"Você é o cavaleiro louco que matou o dragão,
depois matou também a donzela e
por fim destroçou também a si mesmo.
Na realidade, você é o dragão."
que já nos dá a chave de leitura. Reler a epígrafe depois de ter lido o romance até o fim faz sentido e tranquiliza: só podia mesmo ter terminado assim.
O livro é dividido em quatro partes: Coda, Exposição, Desenvolvimento e Cadenza. Os títulos das partes encaixam bem com a caracterização do personagem, que é um pianista virtuoso. Começamos pelo anúncio do fim: o intérprete de Liszt ensaia o seu repertório para a primeira turnê na Europa em que pretende executar "pela primeira vez" a peça intocável de Liszt, Rondeau Fantastique. O pianista levanta da cama, se isola na sala de estudos à prova de som e toca primeiro essa peça que tantos outros pianistas já desistiram de tocar para o público. Os dedos dele tocam a peça porque foram treinados por anos. O autor constrói seu personagem, suas relações com alunos, universidade e família.
A última cena desse ato é o atropelamento e a vertigem ao conferir que a mão direita não está mais lá. As frases curtas, as perguntas (Morrer é isso?), as frases amputadas dão materialidade à reviravolta. Achei geniais as sentenças terminadas em vírgula mas ponto: , mas.
Na segunda parte, estamos diante de um personagem perplexo com a destruição. Sem a mão direita, não há mais piano, turnê, nome inscrito na história. Sem a mão direita, há dor de não ser mais pianista. Dor de perder o sentido. Aqui aparece o primeiro erro que não consegui perdoar ao autor, quando escreve:
"Rômulo consegue pronunciar a palavra que, felizmente, demanda apenas um fonema, uma única manobra dos lábios: "Mãos." Pois é. Eu sou linguista e sei que fonema corresponde a som e que a palavra "mãos" pode ser articulada com os seguintes fonemas: [ˈmɐ̃w̃s ]. O revisor do livro não era formado em Letras? A outra falha era um dativo (lhe) trocado por um acusativo (o), algo como João o agradeceu (perdão, eu não lembro mais onde era, devia ter anotado). Outra falta do revisor.
Depois que todos ficam sabendo que o pianista está amputado, a ex-namorada entra em contato e lhe informa que Rondeau Fantastique já foi apresentado ao público e está gravado no Youtube faz dez anos. Imediatamente lembrei do romance de Bernhard Schlink em que um quadro de René Dalmann é descrito em detalhes. Quando quis ver o quadro, descobri que não era real e fiquei assombrada com o efeito que a descrição do quadro teve sobre mim. Por isso fui na Wikipédia, ver qual é a desse Rondeau Fantastique. O roteiro do Dor Fantasma estava lá, na Wikipédia. Talvez por isso o incômodo: trata-se de contar uma história? É a sequência das ações? Qual o peso do modo como a história é contada? A fragmentação da escrita estava marcada na primeira parte, mas não é consistente ao longo da obra.
Na terceira parte, lembrei do Coetzee, mais especificamente do romance Disgrace. O Desenvolvimento é um encadeamento de desgraças não antevistas, não calculadas, fora de controle. Porque o pianista se considera acima dos outros, melhor que o que colocam em seu lugar. Ele teve boa formação, se preparou, entendeu. O passado e o futuro são dois antípodas. Enquanto o personagem de Coetzee percebe o que está em jogo, o pianista se agarra ao seu passado distante para se defender. Aderimos ao professor universitário de Coetzee com mais facilidade porque o compreendemos. Já o pianista não é acessível, porque elitista. Muito pouco o preenche - e não sabemos o que é esse pouco.
Dor Fantasma é contado a partir do ponto de vista do pianista. Acompanhamos uma história que se desenrola tanto factualmente como em pensamento. Há uma cena em que ele coloca a aluna na posição em que será atropelada por um carro - mas, como essa aluna aparece depois na porta da catedral, entendemos que a cena de atropelamento é um desejo do personagem, não um fato. A última cena de violência narrada na penúltima parte corresponde ao nosso desejo de não ser um fato. Mas, conforme lemos a última parte, entendemos que acontece mesmo: fora da cabeça do pianista.
Essa pouca distância entre pensamento e ação causa um efeito de estranhamento. No filme Cama de Gato (2002), Caio Blat e outros atores encenam as bobagens que alguns jovens bêbados encadeiam. O efeito é de falta de verossimilhança. O pianista amputado está sozinho diante do tratamento, da escolha de usar ou não uma prótese e se sim, qual, por qual valor? Se ele tem família, por que ele decide se arruinar financeiramente sem que percebamos os outros envolvidos? Como ele consegue ignorar o filho dentro de casa?
Cadenza corresponde, na música, a um solo que antecede a coda. Não se trata, no entanto, de emendar as duas partes (artifício usado em alguns romances). O fim está presente no livro desde antes do começo: o título remete ao membro fantasma, a mão amputada; a epígrafe revela a fórmula.
No filme que ganhou vários prêmios no Oscar, Everything Everywhere All at Once, você tem metaverso e saltos em dimensões paralelas, mas o centro da história gira em torno da relação entre mãe e filha adolescente. Pirotecnia abundante para um lugar comum. O personagem de Dor Fantasma precisa ser o maior intérprete de Liszt pra ser isolado, monotemático, conservador, colonizador, elitista, rigoroso e alheio ao mundo ao redor? Não sei.

























