sábado, 31 de maio de 2025

Babel

Pra me preparar apropriadamente para um evento sobre tradução, eu resolvi ler um romance em que os heróis são tradutores e a tradução faz mágica.

Babel é um catatau, mas as conversas sobre tradução são pura popularização da Linguística:

So you see, translators do not so much deliver a message as they rewrite the original. And herein lies the difficulty – rewriting is still writing, and writing always reflects the author’s ideology and biases. Kuang, R.F.. Babel (p. 106). Kindle Edition.

A teoria por trás de tudo é que a tradução sempre será imperfeita e que algo sempre se perde na tradução. Aquilo que se perde, a camada de sentido que uma língua apresenta, mas outra não, é que faz a mágica. As duas palavras nas duas línguas são inscritas numa barra de prata que pode ser instalada num lugar ou funcionar como uma varinha mágica. É preciso dizer - e entender - uma das palavras para que o abracadabra aconteça.

‘The verb translate has slightly different connotations in each language. The English, Spanish, and French words – translate, traducir, and traduire – come from the Latin translat, which means “to carry across”. But we get something different once we move past Romance languages.’ He began inscribing a new set of letters on the other side. ‘The Chinese fānyì, for example, connotes turning or flipping something over, while the second character yì comes with a connotation of change and exchange. In Arabic, tarjama can refer both to biography and translation. In Sanskrit, the word for translation is anuvad, which also means “to say or repeat after and again”. The difference here is temporal, rather than the spatial metaphor of Latin. In Igbo, the two words for translation – tapia and kowa – both involve narration, deconstruction, and reconstruction, a breaking into pieces that makes possible a change in form. And so on. The differences and their implications are infinite. As such, there are no languages in which translation means exactly the same thing.’ Kuang, R.F.. Babel (p. 161). (Function). Kindle Edition.

Uma aula de etimologia sobre a própria palavra "traduzir" e o curioso efeito que a inscrição de qualquer uma dessas palavras teria numa barra de prata: ela vibra, salta, se contorce, treme e faz o entorno balançar. 

O personagem que acompanhamos é Robin Swift, um chinês trazido a Oxford pelo pai biológico - seu tutor e professor de tradução em Babel. O duplo, bipartido, está personificado em Robin que fala cantonês como língua materna e adquiriu mandarim e inglês do pai (além de grego, latim etc.) sem saber que foi concebido como um experimento linguístico executado pelo tradutor e professor. Seus amigos estão na mesma condição: vindos do Haiti e da Índia, eles foram treinados por seus tutores para servir a Babel como tradutores. E assim aumenta o repertório de línguas às quais Babel pode recorrer para produzir suas barras mágicas.

The bars were singing, shaking; trying, he thought, to express some unutterable truth about themselves, which was that translation was impossible, that the realm of pure meaning they captured and manifested would and could not ever be known, that the enterprise of this tower had been impossible from inception. Kuang, R.F.. Babel (p. 535). (Function). Kindle Edition.

Quando o meu texto sobre a adaptação do conto machadiano "O alienista" para os quadrinhos ficar pronto, já sei que vai ter pouca citação, mas muitas epígrafes retiradas dessa obra de popularização.

 

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Adaptação: criação e apagamento

Eu cheguei a escrever um projeto PIBIC (2023) em que eu queria analisar como os sinais de pontuação usados num texto literário eram transportados/ transformados na passagem para os quadrinhos. O conto era o Alienista do Machado de Assis, todo cheio de ponto e vírgulas e travessões com vírgula. As adaptações para os quadrinhos eram pelo menos três: uma dos irmãos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá, outra do roteirista Luiz Antonio Aguiar e desenhista Cesar Lobo e uma terceira (horrível) claramente didática, em que a esposa do alienista tinha cara e sobrancelha de Frida Kahlo e numa cena o alienista era retratado como O Grito de Munch.

Lendo sobre as adaptações do Alienista para os quadrinhos, descobri que ainda havia uma quarta - que eu não consegui comprar. Não fiquei triste, afinal de contas, eu tinha muito material para analisar. Comecei comparando o conto com os quadrinhos dos gêmeos: na página esquerda do caderno eu transcrevia o Machado, na página direita do caderno aberto eu transcrevia o texto que havia nos quadrinhos. Como eles transcreveram praticamente tudo, a transformação de ponto e vírgula no conto em ponto e balão, em vírgula ou ponto na legenda dos quadrinhos passou a ser previsível, dependia apenas se o ponto e vírgula estava numa sentença que viraria diálogo ou descrição nos quadrinhos. Já os travessões - que no texto literário funcionavam como separadores - passaram a funcionar (com menor previsibilidade) como reticências antes e depois, tipo pontes visuais entre um balão e outro.

 

Eu não conhecia o conto do alienista, então fui progredindo na leitura conforme transcrevia o conto nas páginas da esquerda e o texto da adaptação nas páginas da direita do meu caderno. Reparei que o narrador machadiano - que não é aquele que conversa com o leitor - tinha sido editado-apagado dos quadrinhos dos gêmeos. Enquanto eu acompanhava o processo de transposição do original em outro meio, eu ia escrevendo um esboço de artigo. 

Caro leitor, aos poucos, comecei a folhear as outras adaptações para os quadrinhos e fiquei chocada com a figura em cinza que abria a adaptação de Aguiar e Lobo e se intrometia ao longo dos quadrinhos (14 vezes). Esse personagem que ecoava o alienista, completava suas frases, escrevia com a pena e se dirige ao leitor funcionava como o narrador que foi obliterado nos outros quadrinhos. Curiosamente, as duas adaptações foram publicadas no mesmo ano (2007). Uma, extremamente fiel ao texto, sem a marca registrada do autor (o seu narrador irônico que desdenha dos personagens), a outra mais distanciada do texto original (dando maior ênfase por exemplo à revolução dos canjicas - que quase virou uma Revolução Francesa), inventando um narrador que era o Outro Oculto ou o Alienista Alienado (conforme é revelado no "making of"). Só que o narrador de Machado faz par com o autor, enquanto o narrador de Aguiar e Lobo é o duplo do personagem principal, o alienista.

Quando apareceu uma chamada pra um Colóquio de Tradução e Criação, eu resolvi que a transmutação dos sinais de pontuação era menos interessante que o sumiço/ a criação do narrador. Fiz um resumo, enviei pra organização do evento, recebi o aceite, conversei com o meu chefe e fiquei muito feliz que ele me liberou pra participar de evento acadêmico, afinal ele entende que eu sou professora e pesquisadora.

Quando publicaram a programação, vi que o meu nome estava na manhã do primeiro dia. Apavorei, porque eu pegaria avião de manhã, desembarcaria na hora em que começariam as comunicações e corria o risco de não chegar a tempo por causa do trânsito. Trocaram o dia da minha apresentação, o que me deixou muito mais tranquila. Pude sentir a dinâmica do colóquio, das interações, preparar a minha fala sincronizando os slides com o tempo que eu tinha pra apresentar ... e ler o final do Alienista no conto e nas duas adaptações em quadrinhos. Putz! Se o alienista morre depois de um ano e meio em todas as versões, como é que aquele personagem cinza pode ser o duplo do alienista de barba e cabelos brancos? Seria o narrador/alter ego um fantasma?

Apresentei numa mesa junto com os germanistas. Uma estava em busca de um diário do cárcere de Egon Schiele, o outro tinha como projeto traduzir Das Käthchen von Heilbronn do Heinrich von Kleist, mas não conseguiu passar da segunda página, porque os títulos (Graf, Burggraf, Landgraf, Wildgraf, Rheingraf > Conde) medievais não tinham correspondente em português. A última tentava dar nome aos textos de Walter Benjamin. Todos estudavam alemão como língua estrangeira, todos pronunciavam as palavras de um jeito pouco ortodoxo. E eu, que sou bilíngue, falei sobre Machado e quadrinhos e narrador. 

As perguntas que vieram do público foram todas em relação aos sinais de pontuação... No final das contas, o meu propósito inicial de falar sobre os sinais de pontuação foi alcançado. Não tem jeito: me sinto uma popularizadora dos pontos e traços que me ocupam a mente faz tantos anos.