O manto tupinambá era usado em rituais antropofágicos. Segundo Carlos Fausto (1992), não bastava matar os inimigos. Para completar a vingança, era preciso comer os inimigos. Havia um diálogo ritualizado (anotado por um padre empenhado em levar o "amai-vos uns aos outros" e confrontado com o "comei-vos uns aos outros" dos tupinambá):
- Não sabes tu que tu e os teus mataram muitos parentes nossos e muitos amigos? Vamos tirar a nossa desforra e vingar essas mortes. Nós te mataremos, assaremos e comeremos.
- Pouco me importa. Tu me matarás, porém eu já matei muitos companheiros teus. Se me comerdes, fareis apenas o que eu mesmo já fiz. Quantas vezes já me enchi com a carne de tua nação. Ademais, tenho irmãos e primos que me vingarão.
Para o guerreiro tupinambá, o paraíso era o estômago do inimigo.
Guerra e vingança moviam os tupinambá que viveram no tempo da colonização, conforme "Fragmentos de história e cultura tupinambá". O manto que estava exposto no Nationalmusseet e que mudou a história dos tupinambá contemporâneos chegou ao Brasil cercado de controvérsias, polêmicas e embates entre os tupinambá e a direção do Museu Nacional. Eu, que acompanhei a história pelo GT do MPI, fiquei sabendo da chegada do manto ao Brasil pelos jornais. A data do evento de recepção foi uma luta: de 29 a 31 de agosto passou a 10 a 12 de setembro. O horário do evento de alto nível (com a presença do presidente Lula) só foi fixado tipo na véspera. Eu pedi a dois superiores meus pra ir no evento e duas vezes o meu pleito foi negado. Comprei a minha passagem no mesmo voo que a Ministra e surpreendi a todos com a minha presença lá.

Os tupinambá tinham chegado no dia 7 de setembro e estavam acampados no circo do Marcos Frota que fica na Quinta da Boa Vista, atrás do Museu e a poucos minutos da Biblioteca, onde o está o manto.
Eu achava que o manto seria exposto no dia 12, da cerimônia, mas conversando com Karkaju, entendi que Lula veria o manto nesse dia com uma pequena comitiva e que os indígenas já tinham feito sua recepção na véspera à minha chegada. Mas eu vim pra ver o manto!
Na noite do dia 11, os tupinambá tinham assumido o papel de museólogos: determinaram quem podia ver o manto (todos os indígenas presentes) e como (sem sapato). Karkaju falou com Veloso (do Museu Nacional) que verificou se a Polícia Federal já tinha feito a varredura de segurança antes do Lula ir lá ver o manto. Não seria só eu a privilegiada, haveria outras pessoas do MPI que só tinham chegado no dia 12 e tinham perdido o evento da noite anterior. Os três assessores da Secretaria Executiva e eu fomos caminhando com Karkaju e Veloso até a Biblioteca, onde estávamos sendo aguardados pela técnica em conservação.
Prometi não divulgar as fotos que fiz do manto. Mas o objeto em si não desperta emoções - e sim sua história, os rituais passados e presentes, o uso que se fez e se faz do manto tupinambá.
No circo, houve uma cerimônia indígena: circular, com cantos e danças. As autoridades indígenas se fizeram presentes. Cacica Valdelice Tupinambá mostrou sua grandeza.
Marcos Frota, cheio de energia, agradeceu a honra de hospedar os tupinambá no circo.
Sonia comemorou a primeira restituição de artefato indígena musealizado no exterior ao seu povo originário.
O manto atrai como ímã. Imantado manto tupinambá que circulou pelo mundo nos trouxe ao circo.
Yakuy e Karkaju.
Valdelice e Marcos Frota.
Eloy Terena e Yakuy com guerreiro tupinambá ao fundo.
Fizemos uma caminhada até o palco montado para a cerimônia de alto nível. O MPI tinha passado muito tempo digitando listas de nomes de pessoas autorizadas a participar do evento. No fim, as listas não foram necessárias, porque ganhamos ou pulseiras ou adesivos pra entrar.
Demorou muito (sol na cara e pouca ventilação faz a sensação do tempo derretido aumentar) pra começar. Enquanto esperávamos sentados, a comitiva de Lula ia ver o manto na Biblioteca. No MPI, tivemos uma reunião com MEC e MinC a respeito do nome do evento - repatriação? doação? devolução? restituição? - em que defendi "retorno" como medida justa: porque o manto não volta para a pátria e se foi doado, então pertencia à Dinamarca.
Janja, Lula com maracá e Sônia.
Valdelice me fez chorar com o discurso dela.
Yakuy com a embaixadora da Dinamarca.
Célia Xacriabá marcou presença.
Yakuy leu um discurso que já tinha circulado entre nós e já tinha sido submetido à presidência. Eu não consegui ficar pra ver e ouvir o discurso de Lula porque eu tinha dormido pouco, viajado naquele dia, feito nenhum xixi o dia todo (apesar de ter bebido 2 litros de água), estava com fome, dor de cabeça e só tinha largado a minha mala na recepção do hotel. Eu sabia que, no dia seguinte, os jornais trariam o discurso do Lula.
Se antes era guerra e vingança, hoje resta muita luta e pressão. O evento do manto rendeu manchetes políticas nos jornais: Lula se posicionou contra o Congresso agro, a favor da demarcação de terras indígenas e solicitou que o manto seja levado para a Bahia.
O diretor do Museu Nacional, pólo de disputas durante o processo, não estava no evento. Glicéria Tupinambá também não.