sábado, 30 de março de 2024

No mesmo escritório

Luis e eu passamos a morar juntos em Porto Velho. Nossa primeira moradia (Av. Rio Madeira) foi um apartamento de 3 quartos em que cada um tinha o seu escritório. Agnes nasceu na segunda (Vila da Eletronorte), uma casa enorme que tinha quatro quartos: o nosso, dois escritórios e o das coisas da Agnes. Dali mudamos para o apartamento (Av. Farquar) em que eu tinha o meu escritório e Luis foi delimitando o seu na sala. 

Aqui em Brasília, morar no Plano Piloto significa quase que forçosamente morar em apartamento (pequeno e caro). Aqui fomos arquitetonicamente induzidos a compartilhar um mesmo escritório (a maior parte dos livros está na sala). 

Como eu bato ponto e sou a motorista da família, meu tempo em casa é reduzido durante a semana. E no fim de semana, como não temos empregada ou faxineira, não me sobra muito tempo para sentar na escrivaninha. Foi preciso um feriado combinado com contraturno pra Agnes para que nós dois pudéssemos nos sentar em nossas escrivaninhas ao mesmo tempo. 

O tempo de trabalho silencioso (eu recebo informativos da plataforma que o MPI usa dizendo quantas horas silenciosas - sem reunião online - eu tive no mês) foi curto, tanto porque conversamos sobre coisas cotidianas como conversamos sobre o que estava na tela e nos incomodava. Mesmo assim, rendeu e as trocas ajudaram a realizar o trabalho pendente.

quinta-feira, 21 de março de 2024

Sobre provas: o que é sabido e o que pode ser descoberto

Elaborar questões de provas não é tarefa fácil. Quando a gente dá aula para uma turma e depois aplica prova, queremos verificar se certos conceitos, métodos ou esquemas de pensamento foram adquiridos e internalizados pelos alunos. Nas minhas provas de morfologia e sintaxe, eu costumava colocar questões em línguas que os alunos não conheciam, para que analisassem, por exemplo, como se faz negação naquela língua (por afixos, por advérbio?) e o que é negado (uma sentença/ uma coisa/ uma qualidade/ uma ação). Eu não queria testar os conhecimentos de tupi ou alemão, óbvio, mas a capacidade deles de analisar estratégias dessas línguas com base em alguns dados.

Como se estuda para uma prova dessas? Não sei, só sei que não adianta decorar nada, porque é preciso pensar conforme um esquema aprendido - ou não.

Quando os meus alunos na UNIR me mostravam questões de provas de concurso em que se pedia a nomenclatura da gramática tradicional, nem eu sabia responder. Eu não domino essa metalinguagem muito bem: eu sou linguista.

Provas de concurso em que o candidato marca a alternativa correta costumam demandar do candidato o que ele SABE sobre determinado assunto. Não é possível aprender nada durante a prova, porque ela não apresenta problemas a serem solucionados, apenas uma alternativa correta a ser encontrada. Corrigir provas desse tipo não implica na leitura das respostas. Basta automatizar o gabarito em relação às respostas dos candidatos e somar os pontos.

É comum que provas-puzzle apresentem um texto que antecede o enunciado e oferece pistas para a elaboração da resposta. Então o candidato precisa interpretar o texto, o enunciado e construir uma resposta. Esse texto às vezes é uma oportunidade perdida em provas em que ele acaba sendo um mero contextualizador do assunto - ou, o que é pior, fonte de dados para serem corrigidos segundo a gramática normativa. Assim como ler textos da literatura clássica pra fazer análise sintática é frustrante, é contraproducente ler parágrafos de texto pra verificar qual palavra poderia ser trocada por qual outra.

O MPI recebeu um representante da Olimpíada de Linguística para pensarmos juntos como a diversidade linguística do Brasil (as línguas indígenas) pode entrar na prova. Pra mostrar do que ele falava, ele nos mostrou algumas questões. O texto que antecedia o enunciado tratava de uma língua, seus falantes e a ameaça de extinção da língua. O enunciado pedia que se relacionasse palavras em língua indígena dispostas numa coluna com a tradução correspondente na outra coluna. 

Aquele não me pareceu ser o tipo de questão que aproveita o potencial exploratório do candidato. Se o texto é sobre a ameaça de morte das línguas indígenas, a questão também deveria ser sobre a quebra da transmissão intergeracional ou o surgimento do português indígena. 

Precisamos pensar juntos (ABRALIN, Olimpíada e MPI) um curso que prepare bons formuladores de questões.

terça-feira, 12 de março de 2024

Presentes

Hoje eu achei que eu ia chegar cedo no MPI e bater ponto antes das 8h pra acumular mais minutos para o meu banco de horas, mas Luis me pediu pra ir no aeroporto, buscar o isopor que o Jairo tinha mandado. Lá fui eu seguindo a voz da Waze pra chegar na parte de cargas, ao lado do aeroporto. Me perguntaram na entrada se o que eu vinha buscar era pesado. Eu disse que não, mas não tinha ideia do que vinha de Porto Velho. Estacionei onde o guarda indicou, peguei senha, fui atendida, preenchi formulário, o rapaz foi buscar e voltou dizendo que era pra eu trazer o carro, porque o pacote era pesado.

Na verdade, o isopor que o Jairo e a Siomara encheram de polpas congeladas de cupuaçu tinha a largura do porta-malas do carro. Voltei pra casa pensando no tamanho do nosso freezer. Quando Luis e eu abrimos a caixa, vimos muitas polpas de cupuaçu, uma de açaí e três que podiam ser tucumã, mas a cor era meio escura. Mesmo tirando tudo de dentro do freezer, não caberia tudo. Peguei as lancheiras (térmicas) da Agnes e consegui colocar três sacolas de 2k de polpa de cupuaçu dentro. Levei pro MPI.

Quando cheguei, o pessoal tava na rua, pedindo taxi pra ir no Bloco K, onde haveria reunião. Eu tinha que bater ponto antes de mais nada - e achar um freezer. Nossa sala tem um frigobar, e nele couberam as três polpas certinho. Pra quem eu daria esses presentes? Pro pessoal do Norte, que conhece e sente saudade desse sabor. Se eu desse 2k de polpa congelada pra quem não tem o hábito de consumir a fruta, eu teria que ensinar umas receitas junto.

Pensei primeiro no Jecinaldo Sateré, porque ele me vê como alguém que veio de Porto Velho, ele é do Norte e conta história de picada de cobra, viagem de barco, se perder na mata. Depois pensei na Juma Xipaia, nossa secretária - que conhece o Jairo, olha que mundo pequeno! Por fim, na falta da Altaci, que está com a Ministra na França, escolhi a Rose, nossa chefe de gabinete que me agradeceu efusivamente e me disse que cupu fresco vale ouro.

Quando cheguei em casa pro almoço, Luis tinha feito açaí batido com banana. Se tivesse mais três copos, eu tomava. Esse açaí da terra do Jairo não tem xarope de guaraná, ou seja, você não encontra açaí puro em loja nenhuma em PVH. Depois do almoço, Agnes tinha escola e hoje eles fariam um escondidinho na aula de culinária. Agnes levava carne moída na lancheira. Botei uma polpa de buriti junto. No caminho pra escola, Agnes e eu fomos pensando nas condições da escola pra fazer suco de buriti e chegamos à conclusão de que precisava de açúcar também. Paramos no mercado e compramos um saco de açúcar.

Luis chamou o amigo dos velhos tempos, que nos apresentou Brasília quando chegamos, e lhe deu uma polpa de cupuaçu. Levou outra polpa pro trabalho. Conseguimos esvaziar o isopor, mas tem que abrir a porta do freezer segurando polpa pra não cair pra fora. Quando fui buscar Agnes na escola, a professora disse que o suco de buriti ficou fantástico e que todas as crianças (menos Agnes) adoraram o ilustre desconhecido. Confesso que eu não lembro do gosto de buriti. Mas temos polpas no freezer pra descobrir.

E assim é o tempo da fartura: de repente dá tanto, que tem que distribuir. Além de Jairo e Siomara nos mandarem um presentão, alegramos outras pessoas, trazendo a Amazônia pra perto.

sexta-feira, 1 de março de 2024

Revitalizar uma língua

Quanta água tem num rio? Essa pergunta não oferece qualquer resposta confiável, já que a dinâmica dos rios não é compatível com armazenamento e medição de volume estático. Do mesmo modo que não faz sentido perguntar quanta água tem um rio, não faz sentido perguntar quantas palavras tem uma língua. Assim como a água do rio não é suficiente para definir o rio (que tem pedras, lodo, peixes, botos e tantos outros seres, tem margens, desníveis etc.), as palavras de uma língua não são suficientes para caracterizar uma língua, ou seja, conhecer 1.500 palavras de uma língua não equivale a conhecer a língua em que essas palavras ocorrem. 

Os jesuítas chegaram ao Brasil em 1549 e entenderam que precisavam aprender as línguas indígenas para catequizar os "selvagens" em suas próprias línguas. Essa foi a política linguística dos missionários: aprender a língua pra converter os indígenas à fé cristã. Nesse período (que vai até o séc. XVII), foram produzidas três gramáticas: duas de tupi e uma de kiriri. Essas gramáticas eram instrumentais, dirigidas aos jesuítas que precisavam aprender uma língua estrangeira, não tinham a função de documentar a língua ou descrevê-la para a posteridade.

Os falantes de kiriri (também quiriri, kariri ou kipeá) foram exterminados no violento processo de colonização. A cultura ocidental tem acesso só a essa gramática de 1699 do padre Mamiani. Mas veja:

As ferramentas de pedra estão entre os achados mais frequentes nos sítios arqueológicos. Não porque fossem mais comuns ou mais importantes para os humanos, mas simplesmente porque são feitas de matéria-prima que se preserva mais facilmente com o tempo. Na verdade, é provável que os artefatos de pedra — ou líticos — fossem uma minoria na caixa de ferramentas de humanos antigos. Eles confeccionavam também instrumentos de madeira, fibras vegetais, ossos e outros materiais de mais difícil conservação. (ESTEVES, 2023, p. 46-47, versão do Kindle)

Uma língua não é um código, nem o que se depreende de um dicionário ou gramática. A primeira questão é o registro dessa língua: línguas indígenas que foram grafadas por missionários não passaram pelo processo de invenção da escrita, mas foram vertidas em escrita por membros de uma cultura letrada em outra língua. 

O autor do projeto de revitalização do kiriri (sobre o qual elaborei nota técnica) já publicou um dicionário português-kiriri e vice-versa em que a grafia da língua é normatizada e racionalizada. Além das palavras extraídas dos documentos históricos, o autor desenvolveu um sistema numérico de 1 a 99 para o kiriri, porque a língua só tinha números para quantificar de 1 a 10, sendo que 10 era algo como "todos os dedos das minhas mãos" e 20 era "todos os dedos das minhas mãos e dos meus pés". Por que ele não criou também nomes para 100, 200, mil, milhão, bilhão etc.? No projeto, o autor reconhece que 1.500 palavras é pouco para uma língua e se propõe a inventar mais 4.000 palavras. A última ação do projeto prevê a tradução automática do kiriri com base nas 184 regras da gramática de 1699 e as 5.500 palavras.

Estou diante de um projeto de revitalização de uma língua que não foi usada por séculos que só envolve pessoas indígenas de maneira instrumental: está prevista a gravação de vozes indígenas que saibam pronunciar o y longo. As histórias de línguas inventadas que Arika Okrent conta em In the land of invented languages se fazem muito presentes durante o exame desse projeto. Porque estou diante de um indivíduo que resolveu passar pelo exercício intelectual de construir uma língua usando regras e palavras escritas. Quem vai usar essa língua? Uma língua sem falantes é uma língua morta. Ele pretende revitalizar uma língua para ter como resultado uma língua sem falantes?

Durante o meu processo de pesquisa sobre o kiriri, descobri que em 1974 os kiriri fizeram uma caravana para encontrar com os tuxá e aprender o toré. Através da retomada dos rituais e da constante luta pela retomada do território, surgiu o levante linguístico. Atualmente o kiriri é aprendido e ensinado em escolas kiriri.

Lembrei do protagonista de Dor fantasma que dedica a vida ao treino de uma peça de Lizt. Em sua primeira turnê europeia, ele pretende executar "pela primeira vez" a peça intocável, Rondeau Fantastique. Uma ex-namorada lhe manda um link de um vídeo no Youtube postado 10 anos antes com a execução da peça.

O pianista não era antenado nos eventos, não tinha os contatos certos pra saber que não estava trazendo novidade ao mundo. O autor desse projeto não tem contato com o povo para o qual supostamente está trabalhando ao revitalizar/inventar sua língua.