O Projeto de Lei 6.256 de 2019 pretende instituir a "Linguagem Simples" na comunicação do Estado com o cidadão. O projeto de Lei é da autoria da Erika Kokay (PT) e Pedro Augusto Bezerra (PTB) - e portanto foi encarado pelo PL como sendo um "projeto de esquerda". Acho difícil traçar os limites entre ignorância, preguiça mental e rigidez cognitiva.
Linguagem Simples é a tradução encontrada em português para o que se chama de Plain Language. No Brasil existe uma rede Linguagem Simples (até sou membro) que pretende discutir estratégias de tornar acessíveis e claros textos elaborados pelo poder público. Os membros dessa rede percebem que muita informação não é absorvida pelo povo - e que linguagem é poder.
Acontece que, nas apreciações do projeto, entraram dois jabutis: a vinculação da Linguagem Simples ao VOLP e a proibição da linguagem neutra. A ABRALIN, por meio da Comissão de Políticas Públicas, procurou diálogo com os parlamentares para, na condição de linguistas, esclarecer as consequências de se legislar sobre a língua com base em crenças. A nota pode ser lida aqui.
O VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa) é um produto da Academia Brasileira de Letras. Como eles pensam a língua nacional como um patrimônio (imaterial), é preciso inventariar esse patrimônio e estabelecer - ano após ano - uma lista contendo todas as palavras da língua. A grafia do VOLP é a grafia que os dicionários usam como referência. Linguagem Simples não se resume a ortografia de palavras, mas trata de formas de apresentar um texto. Como é que o VOLP beneficia a lei de Linguagem Simples? Simples: no VOLP não constam palavras como todes, amigues, elu.
Chico Alencar (PSOL) levantou a lebre do VOLP: por que trocaram "observar o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa" por "obedecer"? Esse pode ser um elemento engessador - mas ninguém se esforçou pra esclarecer o que é o VOLP e o que ele faz ali no meio de um projeto de Linguagem Simples. A resposta que deram a ele foi que essa mudança foi resultado de muita negociação. Quem faz questão de proteger a língua portuguesa da linguagem não binária? A linguagem neutra é tida como aberração pelo PL - um deputado inclusive cometeu um ato falho e disse "linguagem negra".
Cabo Gilberto Silva (PL) fez questão do banimento da linguagem neutra usando como argumento o emburrecimento da população brasileira nos anos Lula e Dilma. Paulo Fernando (Republicanos) vomitou uma série de arcaísmos, pescou repetições de palavras no projeto de lei para sugerir sinônimos e por fim afirmou que o projeto de Linguagem Simples empobrece a língua portuguesa e representa a norma inculta. Ele afirma que leu o projeto atentamente, mas não entendeu o que é a Linguagem Simples. Domingos Sávio (PL) defendeu que a comunicação do poder público com a população deve ser feita em língua portuguesa e não em Linguagem Simples - como se a Linguagem Simples fosse um idioma à parte, uma versão deteriorada do vernáculo.
A sessão que aconteceu dia 05 de dezembro, foi gravada em vídeo e pode ser verificada aqui. A sessão tem quase 8 horas de duração. Quem quiser se inteirar dessa discussão em específico, recomendo que procure a marca das 6 horas, 14 minutos e 2 segundos.
Chico Alencar (PSOL) argumentou que a bancada conservadora não deve temer que o projeto de Lei instaure uma linguagem chula, reduzida e deturpada da língua portuguesa, já que o projeto obriga o uso das palavras no VOLP. De novo: o VOLP não passa de uma lista de palavras, não dá instrução de como essas palavras se combinam em orações, frases e textos. Citou Manuel Bandeira que, contrastando a fala do povo com a da elite, disse que "o que fazemos é macaquear a sintaxe lusíada" para mostrar que a linguagem sofisticada é linguagem de dominação. Gilson Marques (Novo) não entendeu nem mesmo a intenção argumentativa do Chico Alencar: "maquiar a sintaxe lusíada... que foi isso? Por que citar poesia altamente sofisticada e complicada para defender a Linguagem Simples?"

O relator, Pedro Campos (PSB), liberou a bancada pra votar o destaque proposto pelo PL referente à proibição novas formas de flexão de gênero e número, afirmando que esse destaque correspondia a um jabuti - que é "jabuti" no masculino e no feminino. A piadinha, bem como a citação de Manuel Bandeira, não teve a recepção esperada: "feminino de jabuti é jabota!" "É jabutia!!!". Houve mais votos favoráveis ao destaque que ao projeto (ou seja, mesmo quem votou a favor do projeto não entendeu a vinculação do VOLP à Linguagem Simples), o que garante em lei que, além da obrigatoriedade de usar o VOLP, fica proibido usar linguagem não binária - ou qualquer outro neologismo.
Fica de lição que Linguagem Simples precisa, necessariamente, ser uma postura comunicativa - não uma lista de técnicas para organizar a frase. É preciso calcular o que o receptor da mensagem sabe/entende. Antes mesmo de pensar na forma do texto (ou das palavras, já que não conseguiram ultrapassar a barreira do VOLP e da linguagem não binária), é preciso ter empatia com o receptor. Nesse sentido, o próprio nome Linguagem Simples é um obstáculo: linguagem cidadã seria um candidato melhor. Esse projeto foi votado em tempos de fascismo: um projeto que era pra ser inclusivo acaba excluindo a dinâmica própria da língua porque mirou no que chamam de linguagem neutra.
A nota de repúdio da ABRALIN termina assim:
A Abralin expressa a sua completa discordância em relação ao texto PL º
6.256/2019 aprovado no último dia 5 de dezembro e se coloca novamente à
disposição do Congresso Nacional para discutir, na fase de tramitação no
Senado Federal, uma proposta de comunicação pública verdadeiramente
cidadã, clara, acessível e eficaz, que esteja de acordo com os
princípios do conhecimento científico da linguagem e com a defesa
enfática dos direitos humanos e dos direitos linguísticos.