quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Abrir portas

A Lei de Cotas (12.711 de 2012) para ingresso nas instituições federais de educação superior e ensino técnico de nível médio seria avaliada dez anos depois de sua implementação. O fim dos 10 primeiros anos coincidiu com o governo Bolsonaro, que não levou adiante a discussão, de modo que o Projeto de Lei (PL 5384/2020) que avalia as cotas como positivas e amplia as cotas para quilombolas foi discutido agora, em 2023. Em primeiro lugar, as cotas são para alunos egressos de escolas públicas e estudantes com renda familiar inferior a 1,5 salários mínimos. Em seguida, abre-se para pretos, pardos e indígenas. 

Meu chefe perguntou no grupo whats se alguém poderia acompanhá-lo ao Senado. Eu me dispus e fui conversar com ele. Ao lado dele estava um assessor instruindo-o acerca da matéria a ser discutida em audiência pública. Éramos três, então. Apesar de ser ali embaixo, fomos de táxi, já que o calor está alto e a umidade extremamente baixa. Chegando no Anexo 2 do Senado, o segurança informou que a audiência pública na CCJ estava lotada. Como Eliel Benites era palestrante, ele passou. Gabriel Zanatta insistiu que Eliel precisava de assessoria e permitiram a entrada de só um. Eu fiquei de fora.

Os dois ficaram do lado de dentro, perto da porta, acionando contatos e tentando me trazer pra dentro. Veio chegando uma fila de parentes. Ouvia-se o canto e os maracás. Pararam na porta, em silêncio. O segurança ficou tenso e com o rosto enrubescido, foi falar com a primeira da fila. Iam pra outra audiência, do outro lado do prédio.

Recebi comunicado de que eu podia entrar. A assessora do senador Paulo Paim tinha liberado a minha entrada. Chegando na sala, reparei que as mesas e cadeiras estavam predominantemente vazias. Depois do primeiro pronunciamento, o Senador Paim pediu aos seguranças que liberassem a entrada de quem quisesse participar da audiência pública (mas quem tinha sido barrado antes não foi chamado de volta). As portas da audiência pública se abriram (um pouco tarde) porque alguém as tinha fechado antes.

Turbante e cocar
A mesa foi composta, de um lado, com palestrantes que defendiam (com dados) tanto a continuidade da vigência da lei de cotas como a ampliação para quilombolas; e de outro lado, por indivíduos que eram contra cotas raciais. Acompanhando as discussões, entendi que fora a Nação Mestiça, não havia entidades, instituições ou organizações que defendessem o abandono das cotas. Eram pessoas que citavam seus próprios estudos, sua própria situação e condição que percebiam que a disputa era entre conservadores (eles mesmos) e progressistas (que, segundo eles, tinham maior dificuldade para compreendê-los que vice-versa). Enrolado, né?

O principal argumento era a discriminação maior ainda que o negro sofria dentro da instituição de ensino, porque a cor de sua pele denunciaria que era cotista (como se não houvesse também concorrência entre os cotistas e como se as notas e rendimentos escolares fossem mais baixos). Eu fiquei pensando como o indígena é específico em relação ao negro: além de ser fisicamente identificável, o indígena vem de um outro mundo. Nesse outro mundo, a língua é outra, a moradia, comida, tempo, cultura são outros. E cada povo é um povo, com sua língua, cultura e cosmologia.

A fala do Eliel Benites apontou para possíveis transformações da própria instituição de ensino ao acolher estudantes indígenas. E isso faz toda a diferença. É o "envolvimento" de que fala Sonia Guajajara, é reflorestar mentes. As portas não se abrem só para as pessoas diversas (do branco classe média), mas também para os seus modos de ser.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Xikiña

As mulheres indígenas que vieram dos territórios pra acompanhar a Marcha ofereceram artesanato e pintura corporal. Eu não tinha dinheiro (notas, moedas) pra pagar, nem elas não tinham maquininha em que eu pudesse usar o meu cartão (plastic money). No local não havia caixa eletrônico e eu entendi que eu não podia sair e voltar depois. Elas conversaram entre si na sua língua e uma delas disse pra mim que o marido podia receber pix.

Caminhamos em bloco (bem umas dez pessoas) pelo acampamento até localizar o marido. Anunciei que eu queria fazer um pix e ele disse que o celular dele tinha descarregado. Até tentei argumentar que eu só precisava da chave dele pra fazer a operação, mas depois entendi que, sem o celular dele ligado, ele não tinha como monitorar se a operação tinha sido realizada ou não. Talvez ele também não soubesse a chave pix dele... Em todo caso, entendi que, além de ter que ter um celular, o indígena precisava ter conta em banco pra receber pagamentos. Diante do impasse, o marido sugeriu que fôssemos até o motorista do ônibus.

Seguimos em bloco na direção do estacionamento. No caminho, algumas foram atraídas por uma banca de artesanatos. Como um corpo, de repente todas as mulheres indígenas estavam olhando artesanato, só Agnes e eu tínhamos ficado paradas no meio do caminho. Uma delas percebeu o destacamento, chamou as outras e chegamos no ônibus. O motorista tinha ido banhar, disse o homem deitado na rede esticada entre dois ônibus. Ele mesmo era motorista também, e se ofereceu pra receber o pix. Levantou da rede, entrou no ônibus, achou a carteira e tirou uma nota de 50. 

O valor que eu devia pra mulher era 40. Essa nota de 50 causou outro impasse. O grupo já tinha dispersado e restávamos só 5 pessoas: o motorista, duas mulheres, Agnes e eu. Uma foi conversando com a outra, lembrando quais notas ela tinha recebido de quem. Juntas, foram reconstruindo o inventário de notas recebidas e calcularam que ela podia receber a nota marrom de 50 se devolvesse uma nota vermelha de 10. A outra abriu a capinha do celular e retirou dali uma nota de 10. Eu fiz o pix de 40 pro motorista e quando terminei, já estava sozinha com Agnes. 

Eu não sei qual é o sistema numérico na língua daquelas mulheres, mas lembro que em tupi se contava 1, 2, 3, 4 muitos, um cacho, um enxame, um cardume etc. Além de entender a minha língua, as minhas possibilidades de pagar (cartão ou pix, que são muito mais abstratos que notas de dinheiro), ela tinha que entender as notas e que 50 - 10 = 40. 

Elas transitam entre dois mundos. 

Quando estávamos no MEC, na Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena, uma pessoa indígena tinha ficado de editar o texto que aparecia projetado na parede. Essa pessoa escreveu Chiquinha com a ortografia adotada pra grafar os nomes dos povos (x para os chiantes, k em vez de qu e ñ em vez de nh). Eu achei Xikiña uma solução surpreendente.

Estou lendo o último livro do Márcio Seligman sobre tradução decolonial com grande entusiasmo. Ele aponta que Walter Benjamin "escreveu sobre a tradução como uma “arcada”, que permite ver a outra língua, em oposição à tradução como “muro”, que barra a visão do outro, reduzindo-o aos padrões de gosto da língua de chegada."

quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Marcha das Mulheres Indígenas

Eu estava quieta no meu canto, sentadinha na frente do computador no MPI, quando ouvi o chamado. Era a Marcha das Mulheres Indígenas passando. Muita gente desceu, se acumulou na calçada, viu a marcha imensa passando e fez registros pelo celular. O som dos maracás dava o ritmo. Um grupo atravessou a avenida pra fotografar mais de perto. Eu atravessei e me misturei na massa.
Falas potentes foram proferidas no alto do carro de som. Cantos foram entoados no gramado.
Desde Agnes, eu choro facinho, facinho. Enxuguei muitas lágrimas, mas senti que não estava só na comoção.

domingo, 10 de setembro de 2023

14 anos

No dia 10 de setembro de 2009 eu, Narcísio, Fátima Molina e outros (que eu não lembro) tomamos posse na UNIR. 14 anos depois, continuo vinculada à UNIR, mas em exercício em Brasília.

Hoje começa a Marcha das Mulheres Indígenas em Brasília. Agnes e eu fomos lá na Funarte, ver o que isso significa. Muitas barracas, muitas tendas de artesanato, até mesmo rostos conhecidos. Chirley Pankará e Altaci Kokama eu vejo também no MPI, mas rever Márcia Mura foi uma surpresa.

Agnes ganhou pintura corporal - que Márcia Mura logo reconheceu como Kayapó. Eu fiquei impressionada: tu reconhece o povo pelo grafismo? Depois, caminhando pelo acampamento, fui entendendo os padrões.

As mulheres levantavam poeira. Senti a energia delas.


sábado, 9 de setembro de 2023

Contador de histórias

Oito de setembro caiu numa sexta-feira depois do feriado de 7 de setembro. As escolas enforcaram, mas a Esplanada, não. Na verdade, foi um vai e volta de declarar o dia 6 como ponto facultativo (por questões de segurança) que no fim das contas não teve ponto facultativo nenhum. Agnes não tinha escola, então, na sexta, mas tanto Luis como eu precisávamos trabalhar.

De manhã ela foi pro CNDH e depois do almoço ela me acompanhou no MPI. Como a minha mesa é muito no cantinho e o meu vizinho estava lá, Agnes ficou na mesa do Daniel, que estava em missão. Todo mundo que via a criança loura na sala do Ministério dos Povos Indígenas procurava quem poderia ser responsável por ela e me encontrava sorrindo: é minha. Agnes pediu cola emprestada pra moça que senta na minha frente e foi fazendo bloquinhos de anotações. O meu vizinho ganhou um, a moça que emprestou a cola ganhou um também, até o Seu Jecinaldo ganhou um bloquinho. No final do dia, quando juntamos as nossas coisas, vi que a minha agenda estava toda recortada.

No final da tarde, Altaci pediu uma reunião pra nos explicar o conceito de língua-espírito. Agnes estava imersa no tablet. A certa altura, Eliel comentou que de manhãzinha ouvia na casa dele o canto de um pássaro que o transportava de volta pra aldeia. Urutau? Perguntei. Vendo que Agnes tinha tirado os fones e desgrudado os olhos da tela, ele contou a história dos irmãos Sol e Lua e do urutau: não pode imitar o canto do urutau, porque ele leva a pessoa embora, como aconteceu com a Lua.

Sol e Lua dormiram na margem do rio. Quando acordaram, de madrugada, com o canto do urutau, Lua imitou o canto do pássaro. Sol ficou dizendo que não podia, mas Lua achava graça. Sol adormeceu de novo e quando acordou, Lua não estava mais lá. Tentou atravessar o rio, procurou um lugar, mas o rio estava cheio de jacarés. Andou pra cima e pra baixo, procurando um jeito de atravessar o rio, até que um jacaré falou pro Sol que levava ele nas costas. Sol teve medo do jacaré, mas o jacaré prometeu que não o comeria. No meio do rio, o jacaré pediu pro Sol xingar ele: fala que o meu casco é duro, que eu sou espinhoso e que meus olhos são grandes demais. Sol respondeu que o jacaré era lindo, que ele se encaixava perfeitamente nas costas dele e que os olhos do jacaré eram os meis belos que já tinha visto. O jacaré seguiu carregando Sol até a outra margem, onde Sol logo pulou num galho e seguiu pelas copas das árvores. Depois de muito caminhar, encontrou o irmão Lua magro, faminto, abanando carnes de caça. O urutau tinha dito que Lua tinha que espantar as moscas, mas não podia comer a carne. Sol derramou farinha de mandioca por cima das carnes e quando o urutau chegou e viu as carnes cobertas de pontinhos brancos, achou que eram larvas e foi-se embora furioso. Lua e Sol se refestelaram e depois foram procurar o urutau. O pássaro estava embaixo de um pé de frutas, esperando as frutas caírem. Sol subiu nos galhos, chacoalhou bem e as frutas caíram na cabeça do urutau, amassando a cabeça dele. Por isso ele tem a cabeça chata.

No carro, voltando pra casa, perguntei pra Agnes se ela tinha gostado da história que o meu chefe tinha contado. Agnes ficou perplexa: Você ACREDITOU nas histórias dele???

terça-feira, 5 de setembro de 2023

A hierarquia e o ponto

Descobri recentemente - porque eu fui lá e perguntei - que eu sou obrigada a bater ponto no Ministério. A jornada é de oito horas diárias, sendo que uma hora (no mínimo) de intervalo é obrigatória. Isso significa que eu preciso fazer 4 registros: entrada, início do intervalo, fim do intervalo e saída. Professor universitário não bate ponto. Eu tinha dó das estagiárias da EDUFRO que tinham que bater ponto - mas rapidinho elas descobriram maneiras de burlar o sistema. Eu não terei parceiro pra burlar o ponto, tenho apenas um chefe que homologa o meu ponto.

Considerando que Agnes fica na escola em tempo integral (8h a 18h dá 10 horas), seria de se esperar que eu fosse capaz de cumprir 8h de trabalho. Mas não são 8h que eu dedico ao MPI: são 9, por causa do intervalo de 1 hora no mínimo. Eu, que desço pra almoçar no refeitório às 11h40 e volto pra minha mesa às 12h, preciso esperar dar 12h40 pra registrar o fim do intervalo. Agnes estuda numa escola localizada no alto de uma colina, a 20km da nossa casa. Isso significa que eu preciso de meia hora pra levá-la pra escola e depois preciso de mais meia hora pra buscar a menina. Pra fazer esses 80km diários, eu gasto uma hora do meu tempo de trabalho. Moramos perto do trabalho, mas longe da escola.

Nunca, desde que cheguei, consegui registrar 8h de trabalho.

Eu cheguei num Ministério em que todos - menos eu - são caciques (possuem cargo ou função paga). Eu sou assessora técnica e estou subordinada a uma coordenadora, um diretor, uma secretária e a ministra. Sou demandada com pouca frequência pelos meus superiores e essa ausência de plano ou tarefas me incomoda (apesar de, por outro lado, ser bom ter tanto tempo pra estudar). Quando decidi tomar a iniciativa de articular contatos e estabelecer agendas, a minha superior avisa que qualquer comunicação com instituições externas deve ser feita em nome do/a coordenador(a) ou diretor(a), e sempre em sua presença. 

Esse tipo de hierarquia é, pra mim, tão contraproducente quanto a obrigatoriedade do registro do ponto. Mas quem sou eu?