quinta-feira, 23 de junho de 2022

Ver e não ver

"Todos los escritores son ciegos - en sentido alegórico a la Kafka -, no pueden ver sus manuscritos. Necesitan la mirada de otro. [...] No hay forma de leer los proprios textos sino es bajo los ojos de otro." (Piglia, 2017, p. 63)

Lembrei dessa passagem do El último lector do Ricardo Piglia quando li o texto do Luis publicado no A Terra é redonda. Que o autor não perceba seus erros, o excesso de vírgulas que demarcam as interrupções no processo de escrita, eu entendo. Eu mesma não enxergo os meus erros quando o texto ainda está fresco, porque eu adivinho grande parte dele, não leio cada letra, uma depois da outra. Por isso o revisor, a outra pessoa - que não conhece o texto - tem melhores condições de corrigir o texto. Ou o próprio autor, muito tempo depois, quando ele não lembrar mais do que escreveu e tudo for novidade.

Se o autor é cego, às vezes o leitor nem percebe que lê erros. Porque projetamos tanto quanto vemos. Apreendemos o significado de blocos de letras sem decodificar letra após letra. Quando li o texto publicado, identifiquei alguns erros que tanto o autor como a revisora (eu) como o editor do blog deixaram passar. O pior é que não dei pela falta do "cu" em "cirlação".  

*

Damián ligou dizendo que estava na UPA, que tinha sofrido um acidente e que uma mulher tinha passado por cima da bicicleta dele. No caminho, fiquei pensando que estar na UPA (e não no João Paulo, hospital para onde levam vítimas de acidente) era até bom sinal. Fui entrando pelas portas, corredores e encontrei o Damián num leito. Estava com a blusa toda ensanguentada, a cara manchada de sangue seco. Ele sentou na cama (maca?) e contou o que tinha acontecido.

Uma mulher fez a curva pra entrar na BR olhando pra trás. Colidiu com a bicicleta do Damián que trafegava pelo acostamento. Ele girou por cima do carro dela e caiu de costas no chão e depois bateu a cabeça. 

Provavelmente a mulher olhou pra trás porque achou que não precisava verificar se a estrada estava mesmo à sua frente. Ela confiou na estrutura viária, projetou uma via livre. Os garis que trabalhavam ali perto e foram acudir o Damián e ficaram com ele até a ambulância chegar contaram que viram o ciclista dando uma volta completa por cima do carro. Se espantaram que ele não tivesse desmaiado.

Damián disse que perdeu muito sangue pela boca e nariz, que levou sete pontos na cabeça. Quando eu vi o calombo atrás da cabeça dele, meu sangue gelou. A enfermeira me alertou que ele não queria tomar remédio pra dor. Quando ofereci de trazer ele aqui pra casa, ele explicou que ainda quer chegar no lugar pra onde ia antes de ser atropelado. Hoje tem festa de São João. Mas as costas doíam muito. Quando ele levantou a blusa, expondo as costas raladas, eu senti que era informação demais pra mim. Tive que sentar. Levantei porque a cadeira ela longe, mas senti os membros formigando, náusea, fraqueza e tontura. Ver o que ele não via em si mesmo (os ferimentos e a teimosia) baixou minha pressão. Voltei a sentar, a cadeira cedeu, deitei e fechei os olhos.

- Lou?

Trocou a enfermeira e ela quis entender a situação: 

- Você tá bem?

- Sim, eu sou a visita, só baixou a minha pressão, já vai passar.

- E tu, é trauma? Não pode ficar andando, não. Quatro horas de repouso! E sem água.

domingo, 19 de junho de 2022

Tudo está conectado

Por que é a TV Record (do Edir Macedo) que traz com exclusividade a reconstituição da cena do assassinato de Bruno Pereira e Dom Philips? Por que um programa de variedades veiculado no domingo pretende "encerrar o caso"? O caso está encerrado porque o jornalista disse que está? Por que não é a Globo (que recebeu com exclusividade o material da Lava Jato) que mostra a confissão de Amarildo?

O crime organizado, de maneira genérica, é vinculado à ausência de Estado da Amazônia. O crime organizado é o narcotráfico? A pesca ilegal? O garimpo é mais rentável que o narcotráfico. Ouro de aluvião, na Amazônia, se encontra nos rios. A atividade garimpeira nos rios - que são sustento de comunidades tradicionais - é muito mais devastadora que a pesca ilegal, o narcotráfico ou a supressão de madeira. 

Mas volta lá: ausência de Estado, é? A "Nova Funai", nos tempos de Bolsonaro no poder, é presidida por um delegado da Polícia Federal. Ainda na gestão de Temer, em 2017, um General do Exército era presidente da FUNAI. Não só o Estado está lá, na Amazônia, como as forças armadas estão lá. 

Por que Edward Luz foi indicado a ocupar alto cargo na FUNAI depois que virou bolsonarista e se voltou contra os indígenas? Edward Gomes da Luz, seu pai, é fundador da Missão Novas Tribos do Brasil que pretende evangelizar os índios, até mesmo os isolados. Levar a palavra da Bíblia até o último humano e fazer com que os indígenas convertidos administrem a Igreja Indígena (evangélica) é a missão. De que serve essa missão se os indígenas têm sua própria crença, língua e cultura?

Bruno Pereira atuava na FUNAI defendendo os isolados. Isolar-se é uma atitude. Não significa que "ainda não foram descobertos", mas que resistem ao contato. Por causa das doenças, por causa da perda de território, língua, cultura, identidade. 

Não é à toa que os indígenas sejam atualmente os mais mobilizados dos movimentos sociais. Sua existência e história são atacados constantemente por várias vias há anos - agora, com Bolsonaro, por incentivo do governo.

O modo ocidental de analisar as coisas é quebrar tudo em unidades menores e averiguar como a máquina funciona. O modo indígena de perceber a realidade é outro: tudo está conectado. O rio é nosso parente e ele pode morrer se for muito castigado (Ailton Krenak). Os tiros que mataram Bruno Pereira e Dom Philips vieram de um só lugar. Mas a intenção de matar se originou exclusivamente nesse lugar ou ela fechou o cerco ali?

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Mostra Adrian Cowell de cinema

 

O nosso filme (Entre a cheia e o vazio) será exibido no dia 23 em Brasília, como parte da programação do debate sobre hidrelétricas na Amazônia.

domingo, 12 de junho de 2022

Turtles all the way down

 

A-Tuin, a grande tartaruga que vaga pelo espaço, carrega em cima de seu casco quatro elefantes que sustentam a terra plana (Terry Pratchett, Discworld).

E quem carrega A-Tuin? It's turtles all the way down!

Eu vejo A-Tuin e a recursividade infinita nessa parede do bloco de Letras da UNIR.

Ponto de ônibus no campus

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Qual é a função de um editor?

Hoje encerra o prazo para os autores aprovados no edital 2021 enviarem a versão final de seus manuscritos para iniciarmos o processo de editoração. Versão final significa que o livro já contempla as sugestões feitas pelos pareceristas e já contém eventuais paratextos como prefácio, posfácio etc. Um dos autores mandou email perguntando se era possível estender o prazo, porque ele tinha encomendado um posfácil que estava pra sair.

Não, a função do editor não é corrigir o autor.

*

A Diretora de Pesquisa e Pós da universidade me envia mais dois livros para a Coleção Pós-Graduação da UNIR e me cobra a cada passo: já pediu ISBN? Aqui estão os comprovantes de pagamento de ISBN. Já pediu a ficha catalográfica? Para justificar o assédio no meu WhatsApp, ela explica que o editor é que está cobrando dela. 

Não, editor e diagramador não são a mesma coisa.

*

Toca o meu telefone. Uma amiga de longa data está sendo processada por uma mulher que reclama o direito autoral pelo ineditismo de um termo que ela cunhou e que a minha amiga referenciou. Na conversa ao telefone, eu fiquei sem entender por que a autora que foi citada com referência bibliográfica e tudo quer ser indenizada por danos morais.

Não, a função do editor não é lidar com patentes.

segunda-feira, 6 de junho de 2022

Conteúdo

Sei lá, me parece que a palavra 'conteúdo' é uma das mais vazias de significado (de conteúdo).

domingo, 5 de junho de 2022

Crise

Com muito esforço por parte dos envolvidos, o Conselho Superior Universitário da UNIR deliberou pela adoção do passaporte vacinal: era preciso anexar a carteira de vacinação comprovando ao menos as duas doses ao sistema. Alunos que não tivessem tomado a vacina teriam sua matrícula compulsoriamente trancada, já que não temos controle de entrada no campus.

Voltamos ao presencial usando máscara e confiando que todos estavam vacinados. 

Nessa semana saiu uma portaria da vice-reitoria que dispensava o comprovante de vacinação e recomendava o uso de máscara aos que não tinham se vacinado. Opa, peraí! O comprovante de vacina tinha sido uma conquista nessa universidade. Houve muita gritaria. Por que voltar atrás? A explicação veio em seguida: 26% dos alunos não tinham se vacinado. A gestão da Reitoria considerava que trancar um quarto do alunado instalaria uma crise.

Crise é 26% dos alunos de uma universidade pública não acreditarem na ciência e na vacina. Crise é esse negacionismo que vem roendo pelas franjas. Fiquei com vontade de reler A história sem fim, do Michael Ende, em que a grande ameaça é O Nada. O Nada que avança como uma onda ou avalanche, eliminando sem ruído tudo que encontra pela frente. Não se trata de uma mancha negra que cobre o mundo: o que foi engolido pelo Nada deixa de existir no mundo e nas memórias, como se nunca tivesse existido.

Estamos em Rondônia, um estado que se orgulha de desmatar a floresta para ser agro. Um estado que ignora a diversidade étnica e linguística, não percebe a importância da biodiversidade e esqueceu de pensar o coletivo - como se nunca tivesse existido. 

Com essa portaria que permite que alunos não vacinados frequentem o campus e recomendação que usem máscara durante a liberação do uso de máscaras vigente no país, é como se a deliberação do Conselho Superior pelo comprovante vacinal deixasse de existir. O Nada não está só lá fora.

quinta-feira, 2 de junho de 2022

Air quotes

 

Quer saber uma coisa? Vai lá e pergunta!
No ano passado, Renato e eu escrevemos um artigo sobre alguns sinais de pontuação que são usados na oralidade, ou seja, sinais gráficos que viram expressões idiomáticas. Tipo: está decidido e ponto final

Percebemos que, diferente dos outros sinais, que eram só mencionados pelo nome, aspas e parênteses ganhavam expressões mesmo: "entre aspas" - que é diferente de "abre aspas [...] fecha aspas" e "entre parênteses" e "vou abrir um parêntese" - que são diferentes de "abre parêntese [...] fecha parêntese". Peculiaridades: no caso dos parênteses, é possível "abrir parênteses dentro de parênteses" para mostrar que a divagação é quase infinita. O recurso é o da reiteração, mas por encaixamento: um par de parênteses dentro de outro(s). Já no caso das aspas, é possível enfatizar a ironia ou sarcasmo que as aspas deveriam apontar através da reiteração cumulativa: "muitas aspas".

Aí nos demos conta de que, além de as aspas e os parênteses, que são sinais gráficos, aparecerem na fala sob a forma de expressões específicas, ambos os sinais podem vir acompanhados de gestos! O gesto das aspas é mais universal - apesar das aspas poderem ser grafadas como aspas inglesas [“ ”], aspas alemãs [,, “], aspas francesas [« »] ou aspas retas [" "]...

Sabíamos pouco sobre gestos, mas eu sabia quem estuda gestos (está escrevendo um livro sobre gestos) e pedi ajuda para Lauren Gawne. Ela me forneceu um texto valioso sobre air quotes (aspas gestualizadas) e recentemente desenterrou algumas notas antigas sobre a natureza desse gesto que não pode ser usado sem a fala. Fiquei bem contente com a parceria :] 

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Varal de frases

Primeiro, a preparação. Passei boa parte do domingo na função, com ajuda da Agnes. Ela traçou linhas, organizou as cartolinas coloridas por tamanho e deixou algumas marcas em alguns lugares secretos.

A ideia era que os alunos montassem frases de acordo com uma estrutura dada. Representei algumas estruturas em esquema arbóreo pra fazer eles entenderem que, por mais que falemos ou escrevamos uma palavra depois da outra, nossas frases são planejadas hierarquicamente. Eu não sou gerativista, mas esse tipo de representação ajuda.

Combinamos que a cada um dos 4 tipos de sintagma corresponderia uma cor de cartolina. Sintagmas verbais seriam escritos em cartolina amarela e assim adiante.
Os sinais de pontuação vieram em pregadores de roupa. Distribuí a quantidade de finalizadores (ponto, exclamação, interrogação e reticências) de acordo com o número de frases e dei uns outros sinais de bônus. Quando acabou a aula, reparei que o travessão, ponto e vírgula e dois pontos não tiveram espaço no varal. É, faz sentido: eles não cabem bem em períodos simples.
A fotógrafa não pegou o sinal de interrogação...


Passamos muito tempo envolvidos na tarefa - e o que mais custou neurônios foi a conversão das árvores em frases linearmente ordenadas. No entanto, na vida real, essa tarefa de converter uma estrutura hierárquica em uma linha de palavras é mental e "automática".
O varal de frases exposto na sala não é decorativo, mas resultado de um aprendizado.