quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Livro pronto

Autor submete livro em editora e recebe os pareceres. Frio na barriga: será criticado. Demora a ler os pareceres, mas não consegue deixar de especular sobre o seu conteúdo. Abre o email. Baixa o arquivo. Começa a ler. Voa sobre a parte elogiosa, mas na parte das cobranças e sugestões, as letras se embaralham. O coração acelera, é difícil aceitar, concordar, entender. Mas o parecerista reservou tempo e esforço mental para o seu manuscrito. O parecerista merece uma resposta, merece ao menos o esforço de uma resposta. O autor modifica seu texto; e conforme a escrita desenrola, desenvolve, progride, o pensamento avança e o entendimento do próprio texto fica mais claro. O que era labirinto, fica pequeno.

Organizador submete livro em editora. Ele tinha um tema e muitos alunos que pesquisam assuntos que podem ser arranjados em torno desse tema. Pediu a esses alunos os seus trabalhos de conclusão de curso, escreveu uma apresentação descritiva de cada capítulo e chamou isso de coletânea. Chegam os pareceres. Um é elogioso, mas sem detalhes: parece até que o parecerista nem leu o livro. O segundo parecer é de um especialista respeitado na área, que não admite que os autores não alcancem uma visão crítica sobre o assunto de que tratam. Esse parecer é cheio de ideias, propostas e posição. Esse parecer pretende explorar mais o potencial dos autores e dos textos do que apontar falhas ou faltas. Quem recebe os dois pareceres é o organizador. Ele rumina se os alunos entenderão aquilo tudo, se serão capazes de atender às expectativas do parecerista. Pensa em escrever uma apresentação que responda ao parecerista exigente - e manter os capítulos como estão. Percebe que o resultado seria esquizofrênico. Mas os alunos precisariam amadurecer muito para chegar onde o parecerista os quer ver. Pensa: o bebê nasceu, e mesmo os pais não gostando da fisionomia, não tem como trocar os gens da criança! Informa à editora que os autores não querem nem têm condições de fazer as alterações sugeridas. Depois de ouvir sobre a função dos pareceristas, sobre a aventura da escrita, sobre o resultado do processo, decide conversar com os autores de cada capítulo. Organiza uma planilha de reuniões, iniciando pelo capítulo 1.

Autor e organizador submetem versão final à editora, aguardando imediata publicação. Revisora devolve o texto todo marcado de vermelho, cheio de perguntas e sugestões. Fez mudanças incompatíveis com os manuais de redação consagrados e explica que são normas da editora. Autor e organizador dedicam mais tempo e paciência a esse livro que deveria estar pronto desde a primeira vez que o entregaram. Já não é mais o mesmo texto. Diagramador formata o texto de acordo com o padrão dos outros livros da editora. Deixa páginas em branco. Editor pede ISBN, bibliotecário faz a ficha catalográfica e algum técnico da universidade ligado aos periódicos pede DOI. O técnico da gráfica, que reconhece a gramatura do papel ao simples toque, imprime os livros. Guilhotina, costura, cola quente, acerta a capa. A secretária contrata uma transportadora que leva os livros à editora. Editor confere se está tudo em ordem. Não está. Quando lê no papel, percebe erros que ninguém tinha captado, porque os leitores leram a palavra como um todo, não como uma sequência de letras que precisa ser lida na ordem certa. Letras trocadas na lombada, que coisa! Recado para o diagramador que acerta a ordem e manda imprimir de novo.

Enquanto autores elaboram o texto, outros atores entram em cena para confeccionar o livro. Os autores concentram sua expectativa de publicação no tempo da escrita. Os outros atores percebem o tempo do trabalho artesanal. Publicar um livro demanda tempo e atenção de muitos olhos e mãos.

domingo, 27 de setembro de 2020

Música como instrumento de opressão

Passei parte da quarentena lendo Gonçalo Tavares, o que não é fácil nesses tempos difíceis. Na tetralogia O Reino, estamos diante de um mosaico de guerra, força, espera, loucura e esforço de entendimento da violência. Um homem: Klaus Klump talvez seja o mais brutal de todos os romances que compõem o Reino, porque é escrito de maneira tão caleidoscópica e fragmentária. O cenário de fundo é a guerra e as cenas mais brutais são, a rigor, lacunas no texto - mas suficientemente bem preenchidas na imaginação do leitor. 

Me chamaram atenção duas passagens em que a música se torna instrumento de opressão:

"Um dia, Johana regressava da mercearia com três maçãs caríssimas, e escutou uma orquestra que no meio da rua interrompida [um cavalo morto ocupava a via] e quase vazia de pessoas, tocava músicas que ela não conhecia. Não havia palavras, mas a música não era do seu país. Esta música não é daqui, pensou Johana, e começou a correr muito, em direção a casa, e enquanto corria, chorou.

A música é um sinal forte de humilhação. Se quem chegou impõe a sua música é porque o mundo mudou, e amanhã serás estrangeiro no sítio que antes era a tua casa. Ocupam a tua casa quando põem outra música." (p. 20)

 Mais adiante:

"Uma orquestra militar ascende pelo edifício central e a música desce como os aviões que querem atacar. Transformaram a música numa peste, numa forma de doença que vem pelo ar. 

As mulheres e as crianças ganharam medo da música. Esta música anuncia-os." (p. 26)

Parêntese: eu me sinto assim, invadida e violada toda vez que o brega (cabaré, zona) lá embaixo bota a música (brega) no volume lá em cima.

Por fim, a música nativa, conhecida, familiar, é tábua de salvação:

"De repente Klaus viu o que parecia ser uma claridade intrusa na sua noite individual; mas não. Era um som. Era o som de Alof [companheiro] a tocar [flauta]. No meio da massa negra. Terá a música luz, perguntou-se Klaus. Não uma luz de eletricidade, não uma luz de máquina, mas uma luz orgânica: como certos animais deitam luzinhas nas ancas: os pirilampos, certos peixes: terá a música uma luz orgânica?" (p. 76)

Concordo com Adorno: gostar de música é reconhecer essa música. Por isso a música que interrompe o  silêncio, a música indesejada e desconhecida agride.

 

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Marginalia

Depois que ela se foi, ele dedicou muito tempo a descobrir quem ela era. Meditava sobre cada objeto dela, tentava encontrar ordem no guarda-roupa, nas fotos, nos livros. Folheando os livros, percebeu que ela tinha o hábito de fazer anotações nas margens das páginas. Em outras páginas, sublinhava trechos, dobrava a pontinha da página, desenhava símbolos obscuros. Começou a ler os livros e as intervenções dela na esperança de refazer o caminho dos pensamentos dela enquanto ela explorava o livro. Examinou cada marca inserida por ela, procurou na memória da vivência com ela por passagens semelhantes, tentou concatenar as anotações da leitora com o que conhecia dela. Entendeu que algumas vezes ela traduzia partes do texto, outras vezes se espantava com as exclamações que ela posicionava ao lado do que ele considerava óbvio e aborrecido. No entanto, a maior parte das anotações, marcas e intervenções dela nos livros permaneceu para ele um grande mistério.


*

A nova namorada já se permitia a esquecer objetos na casa dele. Na mesa da sala, ela tinha deixado um livro. Pela capa, parecia um romance. Ele não lia romances, apenas livros técnicos que o ajudassem a adquirir conhecimento. Na verdade, ele não lia: ele estudava através dos livros. O título do livro não lhe despertou a imaginação. Seguiu para a contracapa, onde esperava encontrar uma espécie de sinopse da trama. Lendo duas linhas ao mesmo tempo, percebeu o tema. Abriu o livro depois das páginas iniciais e se deparou com um trecho sublinhado a lápis. Foi fisgado. Sentou, lendo. Mais tarde, precisou acender as lâmpadas. As anotações que ela fazia nas margens do livro dialogavam com o texto, davam brilho à ideia, saltavam para a vida dela. Quando ele entendeu que ultrapassava o ponto em que ela tinha parado a leitura, decidiu marcar passagens para comunicar com ela. Ele, que jamais escrevia nos seus livros, ousou comunicar com a leitora deste livro através de suas anotações nas margens.


terça-feira, 22 de setembro de 2020

Aprender a contar

Lembro de uma viagem que fizemos a Minas Gerais em que Agnes foi o centro das atenções na casa da tia do Luis. Lembro da Sonia contando para as irmãs que Agnes tinha descido as escadas contando um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez.

Morando aqui no prédio, Agnes precisou aprender pelo menos o número 7 e o T do elevador. Com o tempo, foi memorizando os números, mas foi um longo processo. No começo da quarentena, brincamos muito de amarelinha: eu colava fita crepe no chão e usava um polvo (cheio de areia) para funcionar como pedra. Ela confundia o 2 com 5, não lembrava do 6 etc. 

Passei a jogar Uno com ela. A regra era seguir a cor ou o número. Como eu ficava narrando o jogo, ela apenas identificava os símbolos, mas não dizia os nomes dos números.

Aí a quarentena se estendeu por mais tempo que a minha criatividade para novas brincadeiras permitiu e Agnes passou a querer brincar de esconde-esconde. Ela contava: um, dois, três, quatro, sete, oito, nove, dez! Eu reclamei que eu tinha menos tempo de me esconder, porque ela engolia o cinco e o seis. Anotei todos os números numa fileira e dei pra ela. Nas primeiras vezes, deu certo. Daí ela passou a confundir 6 com 9. Escrevi o nome de cada número abaixo do algarismo, confiante de que ela saberia reconhecer o s de seis e o n de nove. Deu certo, mas ela sempre precisava do papel. 

Muitos esconde-esconde depois, o papel tinha sumido e ela voltou a saltar do 4 ao 7. Apostei na rima:

um, dois, três

quatro, cinco, seis,

sete, oito, nove?

Dez!

Agora fixou. Agora ela só conta assim, quase cantando.

domingo, 20 de setembro de 2020

Cobertor de fumaça

Não vejo nuvens há semanas, talvez meses. Estamos embaixo de um grande cobertor de fumaça. Assistindo a uma matéria sobre as queimadas no jornal, Luis lançou o desafio: mostra uma imagem de soja queimando, de boi acuado pelo fogo! Claro que não tem: os fazendeiros não são vítimas.
Os dias amanhecem brancos. Depois do meio-dia, aparece o sol e a fumaça dissipa um pouco. Dá pra ver mais longe.
Hoje de noite caiu uma baita chuva de vento. Vento doido, desordenado, varrendo tudo com força, forçando a chuva pra dentro das janelas. Espero que amanhã tenhamos céu azul. Mas quanto tempo dura?

sábado, 19 de setembro de 2020

Serviço cancelado

Durante a pandemia, ninguém entrou na nossa casa: nem os amigos, nem os consertadores. E assim passamos longos meses com uma privada inativa, porque a válvula de descarga disparava e uma cachoeira passava pelo vaso e até alagava o chão, porque o vaso estava solto. Aí a Rose voltou a limpar a casa e paralelamente o pessoal do prédio ficou decifrando enigmas hidráulicos. Semana passada descobriram uma garrafa pet dentro de um cano, veja só. Nesse dia, veio o encanador que cuida de todos os vazamentos do prédio. Como eu sabia que ele vinha e nós tínhamos previsão de passar o dia fora de casa, pedi a ele que consertasse a válvula disparada e fixasse o vaso no chão.

A válvula ele consertou sem dificuldade, o vaso ele disse que não afixou porque nem daria pra testar, já que naquele dia o prédio todo ficou sem água. Entendi que ele me cobraria mais uma visita se retornasse para resolver o que não tinha feito na primeira vez e lembrei que temos seguro residencial que oferece assistência. Liguei na seguradora que agendou um prestador de serviço para terça-feira, entre 14h e 16h. O prestador (provavelmente terceirizado) tinha essa janela de 2 horas para chegar. Mandariam um link através do qual eu podia acompanhar o pedido e a localização do prestador de serviço. 

No dia e hora marcada, o link não funcionava. Liguei na seguradora e a atendente informou que o prestador estava terminando outro serviço e que seguiria para cá. Extrapolou o horário, eu liguei de novo na seguradora. Entendo, senhora, sei perfeitamente como é frustrante perder a tarde esperando por alguém que não vem. Tentei ligar para ele, mas ele não está atendendo. Vou cancelar e agendar outro. É outro prestador que vai na sua residência, ok?

Só que o prestador de serviço não foi informado de que tinha sido cancelado. Veio uma hora depois de expirada a janela de tempo. Luis olhou pela janela e viu um carro muito velho, amassado, sujo e cheio de peças fazendo manobras agressivas enquanto o escapamento explodia combustão. 

O segundo prestador estava agendado para o dia seguinte, entre 8h e 10h. Faltando 5 minutos para encerrar a janela, o prestador apareceu, fez o serviço, limpou tudo (!) e foi embora. A seguradora me pediu que eu avaliasse o serviço dele e eu dei o assunto por encerrado. Ao meio-dia o porteiro ligou, dizendo que o rapaz da seguradora estava aqui para consertar a privada. Opa, o serviço já foi feito. Olhei pela janela e observei um Uno quadrado e velho todo batido, cheio de sucata dentro soltando explosões pelo escapamento e fazendo manobras imprudentes. Liguei na seguradora e avisei que o prestador que teve o serviço cancelado tinha voltado.

A outra história começou antes, se arrastou por mais tempo e só teve desenlace agora. Era junho, terceiro ou quarto mês de pandemia. Luis tinha pedido mais canais de TV na assinatura e mais megas de internet também. Uma semana depois, o dia já escurecendo, o porteiro ligou dizendo que um técnico da Oi estava aqui, querendo instalar um ponto adicional. Não estávamos mais no horário comercial, não tínhamos pedido ponto adicional e ficamos escandalizados com a ousadia de um técnico querer entrar em nossa casa em plena quarentena. Foi uma longa negociação com o técnico via interfone e no final ele foi embora. 

Luis ligou na Oi reclamando que um técnico queria instalar ponto, quando o que ele tinha pedido se resolve via sistema. Deram prazo de 10 dias e o plano voltou ao básico (perdemos vários canais). Luis reclamou, deram outro prazo, mas nada mais aconteceu. 

Paralelamente a isso, Luis tentou fazer downgrade na Claro (celular), porque como não saímos de casa, não faz sentido ter um pacote de dados de internet tão grande se tem wifi em casa. Não conseguiu. A Claro continuou cobrando o mesmo valor e oferecendo um produto obsoleto na pandemia. Luis cancelou a Claro e pediu um chip da Oi. Já chegaram 3 chips da Oi aqui e nenhum deles é ativado, porque Luis está com o contrato bloqueado na Oi. Foi uma longa jornada de ligações, com atendentes diferentes (provavelmente terceirizadas) que viam telas diferentes e diziam coisas desencontradas. Conversando com a Ouvidoria, ele sentia mais firmeza, mas todas davam prazo de 10 dias e nada acontecia. 

Quando ele perdeu a paciência, mandou cancelar tudo. Mas senhor, todos os seus pedidos já estão cancelados. Parece que o seu contrato foi bloqueado. Quem bloqueou o meu contrato, já que estou há meses ouvindo de vocês que em 10 dias tudo será resolvido? Não dá pra saber quem bloqueou. Técnico consegue bloquear? Isso tá parecendo vingança do técnico que veio aqui e não conseguiu instalar o ponto que eu não pedi. Sim, é possível.

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Olhar de diagramador

Quando eu assumi a EDUFRO, Leidijane era a diagramadora. Eu me espantava com o olhar que ela tinha do texto. Ela via a mancha textual, enquanto eu lia as palavras. Eu não sei olhar para um texto sem ler as palavras. Ela reclamava quando tinha que ler as palavras (porque isso é função do revisor).

Agora que a EDUFRO terceirizou a produção de seus livros, percebo claramente o valor do trabalho do revisor e do diagramador. O revisor recebe um valor mais alto: negocia com os autores, argumenta para defender as alterações feitas. O diagramador recebe um valor mais baixo, porque, em essência, a função dele é transportar o texto de um programa (Word) para outro (InDesign). As reclamações que o diagramador recebe concernem espaços, organização de elementos gráficos. 

Nesse processo de editoração em que estamos envolvidos, 18 livros estão sendo feitos pela mesma empresa. Cada etapa (revisão, diagramação e impressão) prevê 3 provas. Por exemplo: revisor apresenta primeira prova, autores avaliam, fazem ajustes. Revisor corrige, apresenta segunda prova. Autores percebem outros erros que tinham passado, fazem emendas, revisor corrige e apresenta a terceira e última prova. Aí entra o diagramador. Só que quando o texto é apresentado em PDF, com 33 linhas por página, no formato já do livro, os autores percebem mais "gralhas" e o diagramador precisa resolver essas demandas.

O meu contato com a empresa terceirizada se dá através do diagramador. É para ele que eu repasso os livros, as capas, as demandas. O diagramador, que recebe o menor valor de todos, acompanha todo o processo de confecção do livro (ele até precisa entender de impressão). Só que o modo como ele lê o texto é ou macro (mancha textual) ou micro (resolver gralha). Num livro, por exemplo, os autores sugeriram que uma vírgula numa frase fosse convertida em ponto final. O diagramador fez isso. Vírgula virou ponto. Mas o que vinha depois do ponto permaneceu em letras minúsculas, porque o olhar micro não foi além do ponto.


domingo, 6 de setembro de 2020

Telepatia

Cena: Marido e mulher na cozinha, reclamando do calor e da sede que não sacia. Homem tira polpa de cupuaçu (de 1kg) do congelador e deposita na pia. Criança demanda atenção, dispersam.

Mulher volta à cozinha depois de um tempo e pensa: "Puxa, ele deixou a polpa aqui na pia e não fez suco. Se derreter, vai estragar. Vou devolver ao congelador."

Marido retorna à cozinha depois de mais tempo ainda, procura pelo suco de cupuaçu na geladeira e pensa: "Ela não fez o suco! Pôxa, eu deixei a polpa bem aqui pra ela fazer..."

Além dos pensamentos serem desencontrados, as expectativas em relação ao outro também são.

 


sábado, 5 de setembro de 2020

Sexta no sítio

Flor de cupuaçu

 

Flor de cacau-rana
Agnes fazendo cócegas em Rompe-mato



quinta-feira, 3 de setembro de 2020