Não lembro exatamente o ano, mas imagino que deve ter sido entre 1995 e 1998. Éramos todos cabeludos e adolescentes, eu viajava com Wernher e Leo para Itatiaia com certa frequência e namorava o Fernando. Wernher e eu frequentávamos a mesma escola (entrei na USP em 1996), mas ele era um ano mais novo que eu. A mãe dele só autorizava as viagens com o Leo porque a Lou ia junto - e a minha mãe só deixava eu ir com eles porque o "Wermi" ia junto. O Leo era estudante de Física na USP, tocava um laboratório de identificação de componentes químicos através de fios de cabelo e escalava. As viagens pra montanha eram pra compensar as horas de escalada em academia (principalmente do Leo). Foi em Itatiaia que conhecemos o Everal (esgrimista) que se juntou ao grupo e me apresentou a Linguística: ele estudava na USP e me convenceu a escolher Linguística ao invés de Português.
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Everal |
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A primeira vez que me chamaram de pé-frio foi na volta de uma viagem a Itatiaia em que muita coisa deu errado. Quando chegamos na minha casa (todos sujos e cansados), a palmeira no jardim tinha quebrado ao meio. Todos olharam pra mim e decretaram: você é pé-frio. Não lembro de tudo que deu errado na viagem, mas consigo recuperar alguns fragmentos: Everal foi dirigindo um Fusca que tinha sido abandonado perto da fábrica de toalhas do pai do Leo em Guaratinguetá. O Fusca não tinha buzina, por isso Leo nos deu uma bateria eletrônica (quem ouviria aquele som fora do carro, se as janelas não abriam?); o câmbio só tinha 4 marchas (mas Everal insistia em colocar a quinta na subida, o que exasperava o Fernando); quando fomos parados no posto policial, Everal não tinha nem carteira de motorista, nem conseguiu puxar o freio de mão e teve que pisar no pedal mesmo estando fora do carro, tentando convencer o policial de que o xerox da CNH valia pela carteira. Depois, já instalados em nossas barracas, resolvemos escalar o Pico das Agulhas. Na subida, cruzamos com uma moça (Amy) e dois rapazes (mal preparados para a montanha) que nos acompanharam até o topo. Não deu pra assinar o livro (que fica dentro de uma caixa de metal, junto com várias canetas gastas), porque caíram várias chuvas de granizo. Pedra de gelo na cabeça dói. Foi escurecendo e as pilhas no capacete do Leo acabaram. Descemos devagar e encordados. Tropeçava um, balançava o outro, caía outro e o último gritava de susto. Quando chegamos na barragem perto do Abrigo Rebouças, o lugar que tínhamos atravessado sem molhar os pés na ida tinha virado um rio caudaloso. Leo atravessou primeiro com a corda, Wernher foi depois. Amy não quis que o Everal experimentasse seus nós complexos e se meteu na água segurando a corda - e foi levada pela correnteza. Um vulto branco descendo o rio. Choque. Wernher saiu em busca da americana e a encontrou agachada: Tudo bem, Amy? Dá licença, por favor, estou fazendo xixi. De madrugada, chegamos na hospedaria e o homem não tinha comida pra nós. Comi damascos secos que me trancaram a garganta. No dia seguinte, voltei com Fernando no carro de um dos acompanhantes da Amy. Ele dirigia com as mãos abertas, porque todos os dedos estavam cheios de esparadrapos. Aí chegamos na minha casa e a palmeira estava quebrada: prova de que eu tinha levado o azar pro grupo.
Em 2007, quando eu estava fazendo doutorado-sanduíche na Holanda e era bolsista Alßan, fui a Grenoble, apresentar o meu trabalho. Como a Europa é pequena, resolvi aproveitar a saída e conhecer a Itália. Me apaixonei pela língua, me atirei às hipóteses sobre construções e conversei com desconhecidos que riam na minha cara. No final do giro, fiquei hospedada na casa da Manoela, (então) namorada do Everal. No dia da minha partida, uma nova palavra me impôs restrições: sciopero. Greve de aeroportuários por algumas horas e eu tive que voltar de alguns trens e ônibus em muito mais horas que o planejado. Fiquei pensando: será que eu sou pé-frio? Eu viajo e...

Em novembro de 2008, participei de um Encontro Nacional de Cicloturismo e Aventura que aconteceu em Camboriú, SC. Ficamos a maior parte do tempo no hotel, porque choveu muito: tanto, que a cidade alagou, pessoas foram desalojadas e cedemos camas para cidadãos que vieram procurar abrigo no hotel. O grupo passou por uma experiência de forte união - não pelo pedal, mas pela tragédia em volta. Quando o tempo de hospedagem no hotel acabou, a água começou a baixar, mas ainda havia barreiras nas estradas, de modo que fui com um grupo de pessoas prum apartamento vazio em Balneário Camboriú, onde esperamos a situação regularizar. Pensei: olha eu entrando pro clube de cicloturismo e lá vêm as chuvas catastróficas de Santa Catarina.

Em 2012, passei em primeiro lugar no concurso para professor na UFSM. As provas tinham sido em maio, o resultado tinha saído e eu só aguardava a nomeação. Em julho teve a festa junina na UNIR e eu fui já na intenção de me despedir. Conheci o Luis na festa. Conseguimos ficar juntos, mesmo que separados pelos quilômetros. No início de 2013, no período de férias, houve o
incêndio da boate Kiss. Eu não estava lá, mas fiquei pensando: quando eu mudo de lugar, acontece coisa ruim nesse lugar. Sou pé-frio?
Em fevereiro de 2014, Luis e eu retornamos (casados) a Porto Velho, RO, para as nossas vagas na UNIR. Em março foi o pico da cheia histórica do rio Madeira. Fizemos um filme sobre a cheia do Madeira e o vazio de responsabilidade pela tragédia - que venceu prêmio no Fest Cine Amazônia. Fiquei pensando que eu nunca mais poderia mudar de lugar, porque não é seguro para a cidade em que eu for me instalar.
Agnes teve a primeira infância numa casa grande, com um jardim cujos limites eram difíceis de definir. Em 2019, o proprietário decidiu vender a casa e nós não conseguimos comprar. Mudamos para um apartamento e poucos meses depois a pandemia se instalou. Essa não é a primeira mudança de casa em Porto Velho (é a minha sexta moradia nessa cidade desde 2009), mas é associada a outra situação de emergência.
Sou eu que sou pé-frio ou é o mundo que gera tragédias (de várias naturezas)? Em tempos em que os americanos sentem necessidade de ir às ruas para comemorar a eleição de um conservador, acho que eu sou irrelevante. Toda a esquerda comemora muito mais a não reeleição de Trump do que a vitória (apertada) de Biden. O discurso dele foi morno, protocolar e cheio de sorrisos tortos. Já o discurso da vice dele, Kamala Harris, foi ponta-firme, anti-Trump. As tragédias que por coincidência acompanhei de perto têm, em alguma medida, relação com o modo como o mundo é conduzido (explorado, revirado e pavimentado).