sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Visão de piloto de avião

Perdi a manhã inteira sentada na sala de espera do oftalmologista. Eu achava que eu tinha consulta marcada logo cedo, mas quando cheguei, tive que pegar senha e aguardar. Conforme o tempo passava, eu ia afundando na cadeira, o olhar perdido. A moça que finalmente me atendeu no balcão, pra digitar os meus dados no sistema e escrever o meu nome numa fitinha branca que ela afixou no meu punho tinha um crachá de técnica em enfermagem. Aquilo foi me deprimindo. Tanto estudo pra trabalhar no guichê anotando dados. Depois ela me levou numas máquinas, apertou botões e justificou o crachá.

Depois ainda fiquei uma hora sentada na frente da porta do oftalmologista que entrava e saía da sala com alta frequência. Afundei de novo na cadeira.

A consulta durou 10 minutos e ainda foi interrompida pela técnica em enfermagem. Tenho visão de piloto de avião, foi a conclusão. 40 anos? Vista cansada. Isso explica as náuseas quando leio de noite no meu celular? Em parte, sim. Tente mudar o brilho da tela, aumentar e negritar as letras, que melhora. Então o problema não sou eu, mas o celular!

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Preconceito

Esse semestre estou dando aula na Química, na Enfermagem e nas Ciências Contábeis. Dei a mesma disciplina nas três turmas, mas saíram muito diferentes, por causa das características próprias das turmas. A proposta do curso - explorar gêneros textuais diferentes e focar nos gêneros acadêmicos - foi a mesma, mas os textos que serviram de base para as avaliações foram direcionados para cada turma.

Para fazer o fichamento,

a turma de Química leu um texto sugerido por uma amiga minha, professora de Química (sobre o conceito de densidade em Química);
a turma de Enfermagem leu um texto do Mecacci (Conhecendo o cérebro, 1987) sobre os dois hemisférios cerebrais;
a turma de Contábeis ... bem, eu não pude contar com a ajuda de amigos professores de Contábeis, nem aproveitar qualquer convergência entre o que eles estudam e o que eu estudo. Como às vezes, durante aulas de sintaxe, por exemplo, havia atrito com um rapaz craque em gramática tradicional, a quem não consegui explicar a contento que a Linguística é uma ciência que toma por objeto a linguagem e que a gramática tradicional não é uma ciência, mas um modelo de uma língua idealizada, decidi oferecer como texto para fichamento o primeiro trecho do primeiro capítulo do Preconceito linguístico do Marcos Bagno. Todos, inclusive esse rapaz, souberam aproveitar bem o texto. Desse modo, o preconceito linguístico, muito disseminado na nossa cultura e expresso por esse rapaz mais de uma vez, se tornou ao menos visível.

Para fazer o resumo,

a turma de Química leu o conto A última pergunta, de Isaac Asimov (eles tinham feito textos argumentativos sobre fake news e se esforçaram para entender o tema. A última pergunta foi um prêmio);
a turma de Enfermagem leu o capítulo Crítica às ideologias do cérebro de Nildo Viana, sobre o determinismo cerebral, em que a separação do cérebro em dois hemisférios é criticada como sendo apenas uma ideologia (dentre outras, por exemplo, de que o volume cerebral informa sobre inteligência; de que é possível mapear  comportamentos, sentimentos e dons no cérebro; de que o cérebro é fluido e tudo não passa de relações químicas; do paralelismo psicofisiológico etc.);
a turma de Contábeis leu o conto Um general na biblioteca de Ítalo Calvino. E eu escolhi esse texto porque acompanho o grupo de whatsapp deles (pois é) e as discussões entre eleitores de Bolsonaro e não Bolsonaro foram intensas. Tive acesso a muitas fake news através desse grupo, em que muitas pessoas replicavam desinformação e se agrediam com emoticons😏.

Adotei como estratégia didática estabelecer a data de entrega pra depois da aula. Como sempre recebo trabalhos antes da aula, tenho tempo de ler, perceber tendências, comentar em sala de aula e evitar mal-entendidos. Quase todos que tinham entregado antes do prazo acabam refazendo seus textos com base nos comentários em sala de aula.

Os primeiros resumos de Um general na biblioteca me assustaram: toda a dinâmica dos militares acampando na biblioteca com a missão de censurar livros que "fossem contrários ao prestígio militar" foi descrita - os carimbos, as patentes, os relatórios, a divisão de tarefas. Depois há um salto para o  período de silêncio na biblioteca, que conduziu a base militar a decidir encerrar a missão. Em seguida, o general encarregado da missão apresentou seu relatório - que não agradou - e foi aposentado.

Fiquei pensando nO evangelho segundo Jesus Cristo, do Saramago. No romance, Saramago fez uma opção de não transcender a morte de Jesus. A história acaba com a morte do homem. Não há ressurreição - tão significativa para os cristãos. Saramago, enquanto ateu, acreditava que Deus não existe, portanto o Reino de Deus não é uma promessa. Os alunos que leram Um general na biblioteca e produziram resumos como descrito acima, fizeram uma opção por silenciar a transformação que aconteceu com os militares na biblioteca sob orientação do senhor Crispino, o bibliotecário? Eles não acreditam que o conhecimento transforma as pessoas, que convicções podem ser desconstruídas através do diálogo e do argumento?

Ou será que eles não entenderam o conto? Um deles confessou que não tinha entendido o conto nem na segunda leitura. Mas como ele tinha a tarefa de resumir o conto, procurou na internet. Achou um vídeo no Youtube e o entendimento assentou. Percebi grande resistência ao texto escrito. O audiovisual - ver e ouvir uma pessoa falando - fez toda a diferença. Decidi nunca mais fazer a brincadeirinha "gente, eu fiz Letras, não Números", porque parece que a recíproca é verdadeira - e preocupante, a meu ver.

Tentei comparar o conto com uma parábola. As parábolas de Jesus são, por exemplo, sobre sementes jogadas em lugares diferentes; não sobre pessoas que compreendem ou não uma mensagem. No meu entendimento, Um general na biblioteca é sobre militares que decidem censurar livros que não corroborem suas opiniões formadas; não sobre preconceito (pré-julgamento; Vorurteil; nas palavras de Bagno: "resultado da ignorância, da intolerância ou da manipulação ideológica"). Os militares acampados na biblioteca foram confrontados com uma complexidade que seus preconceitos simplificavam. Não conseguiram articular toda a complexidade recém apreendida no ato de apresentar relatório - e os seus superiores, que esperavam uma simples lista de livros permitidos e outra de livros proibidos, não souberam lidar com a desconstrução explícita de seus próprios preconceitos.

"Eu nem leio esse tipo de texto que desconstrói as minhas crenças, professora" disse o rapaz que afirmou que só em Portugal eles falam o português correto, mas fez um fichamento pertinente do início do Preconceito linguístico. Pois é. Escola sem partido é isso, não permitir que visões de mundo diferentes daquelas adotadas pela família (eles chamam de ideologia) sejam apresentadas na escola - e, se Bolsonaro conseguir, na universidade. Escola sem partido chama tudo que é de fora/desconhecido de ideologia, mas está inserido numa ideologia: o conservadorismo, a não abertura.

Retorno mais uma vez a Bagno: "A função da escola é, em todo e qualquer campo de conhecimento, levar a pessoa a conhecer e dominar coisas que ela não sabe [...]."

E já que estamos fazendo pontes entre ideologia e preconceito, complexo e confortável, recomendo A gigantesca barba do mal, grata surpresa do universo dos quadrinhos.

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Cê tá falando errado

Agnes não produz nenhum som da família do R:
hua, hato, hio madela
guipe e tosse, fiio e calôa, um dois têis
ávoli, vemeio e amanelo

nem chia:
Zúlia, zanela,
sícala, sávi, socolati.

E me diz que eu estou "falando ehado". Deve ter aprendido na escolinha que existe certo e errado.